O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) deu início, na quarta-feira, 5 de novembro de 2025, ao projeto 'Democracia Além das Grades'Rio de Janeiro, uma iniciativa inédita para garantir que presos provisórios e adolescentes em unidades socioeducativas possam votar nas Eleições Gerais de 2026. A apresentação foi feita pelo vice-presidente e corregedor do tribunal, Cláudio de Mello Tavares, em reunião com o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ). O que parecia ser uma medida técnica — logística, de identificação, de treinamento de mesários — tornou-se o epicentro de um conflito constitucional que divide o país. Porque enquanto o TRE-RJ avança, o Congresso Nacional caminha na direção oposta.
Um direito garantido pela Constituição
A Constituição Federal, em seu artigo 15, inciso III, é clara: só perdem o direito ao voto quem foi condenado por sentença transitada em julgado — ou seja, sem mais recursos possíveis. Presos provisórios, por definição, ainda não foram julgados. São cidadãos em custódia, não condenados. E isso faz toda a diferença. "O projeto visa garantir o princípio constitucional da universalização do voto, assegurando a participação dessa parcela da população que, por não ser condenada em definitivo, ainda mantém seus direitos políticos", explicou Cláudio de Mello Tavares. Não é generosidade. É obrigação.
Em 2022, cerca de 12.903 presos provisórios no Brasil tinham direito a votar. E 11.363 deles fizeram isso. Um número pequeno? Sim. Mas comparado aos 1.888.485 votos que separaram Lula de Bolsonaro naquela eleição, não é insignificante. Imagine se 50 mil votos a mais, vindos de presídios, tivessem mudado o resultado em São Paulo ou Minas Gerais. Não é hipótese. É lógica eleitoral.
Contra-corrente no Congresso
Na terça-feira, 18 de novembro de 2025, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção, uma emenda proposta pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) que proíbe o alistamento eleitoral de presos provisórios e cancela títulos já emitidos. A emenda foi incorporada ao chamado PL Antifacção (Projeto de Lei 5.582/2025), que também cria penas de 20 a 40 anos para crimes cometidos por organizações criminosas ultraviolentas. A aprovação final do projeto, com 370 votos a favor, foi celebrada por setores conservadores como um passo "contra a criminalidade organizada".
"Não faz sentido a pessoa que está afastada do convívio social decidir nas urnas o futuro da sociedade. É um contrassenso! Chega a ser ridículo quando dizemos em outros países que no Brasil é possível um preso votar numa eleição", afirmou van Hattem. Para ele, o voto exige liberdade e autonomia — condições que, segundo ele, não existem na prisão. Mas será que a ausência de liberdade física anula automaticamente a capacidade de escolha? A Justiça Eleitoral já respondeu: não.
Quem votou a favor — e quem não votou
Curiosamente, entre os que apoiaram a proibição estavam nomes como Kim Kataguiri (União-SP), Marco Feliciano (PL-SP), Adriana Ventura (Novo-SP) — e também Alencar Santana e Benedita da Silva, ambos do PT. Sim, o mesmo partido que, em 2022, defendeu a ampliação do acesso ao voto para presos provisórios. A mudança de posição levantou questionamentos. Será que a pressão política sobre a segurança pública superou o compromisso com direitos fundamentais? O Psol e a Rede foram os únicos partidos que mantiveram posição firme contra a emenda.
Na prática, a aprovação na Câmara não é o fim. A emenda ainda precisa passar pelo Senado Federal. E mesmo que passe, o TRE-RJ e outros tribunais eleitorais já afirmaram publicamente que não vão deixar de cumprir a Constituição. O conflito está montado. E a próxima cena? O Supremo Tribunal Federal.
O projeto piloto: como vai funcionar?
Enquanto o Congresso debate, o TRE-RJ já está em ação. O projeto 'Democracia Além das Grades' será implementado de forma experimental. As unidades prisionais que participarão ainda não foram definidas, mas os critérios são rigorosos: segurança para mesários, infraestrutura para instalação de seções eleitorais, e — crucial — exclusão de presídios onde há presença de facções criminosas. Não é medo. É realismo. A ideia é evitar que a votação seja manipulada por líderes de gangues.
Os presos que quiserem votar precisarão de título de eleitor e comprovante de endereço — documentos que, normalmente, exigem saída da prisão. A solução? A emissão desses documentos dentro das próprias unidades, com apoio da Defensoria Pública e da Justiça Eleitoral. Também será feito um mutirão de captação de mesários voluntários, incluindo servidores públicos e estudantes de direito. O objetivo: criar um modelo replicável em outros estados.
O que vem a seguir
Se o Senado aprovar a emenda de van Hattem, o TRE-RJ e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) devem recorrer ao Supremo Tribunal Federal. A pergunta será simples: o Congresso pode, por lei, retirar um direito constitucional? A resposta histórica é não. A Constituição é a lei máxima. E o voto, para quem não foi condenado, é um direito inalienável — mesmo que incômodo.
Na prática, isso significa que, em 2026, enquanto alguns presos provisórios no Rio de Janeiro vão às urnas dentro de suas celas, outros em São Paulo ou Minas Gerais podem ser impedidos — dependendo da interpretação local. O risco? Um caos eleitoral. Eleições com resultados contestados por falta de uniformidade. Um país onde o direito de votar depende de onde você está preso.
Por que isso importa para todos nós
Isso não é só sobre presos. É sobre quem define o que é cidadania. Se a prisão provisória é sinônimo de perda de direitos políticos, então estamos criando uma nova classe de cidadãos de segunda categoria — não por sentença, mas por acusação. E isso abre a porta para abusos. Um político pode querer deslegitimar um oponente apenas por prendê-lo antes da eleição. É um risco real.
Além disso, o fato de que 11 mil presos provisórios votaram em 2022 mostra que, mesmo em condições extremas, há interesse em participar da democracia. Isso não é um defeito do sistema. É uma prova de que a democracia ainda resiste — mesmo atrás das grades.
Frequently Asked Questions
Por que presos provisórios têm direito a votar se estão presos?
A Constituição brasileira garante o voto a todos os cidadãos, exceto os condenados com sentença transitada em julgado. Presos provisórios ainda não foram julgados — portanto, mantêm todos os direitos políticos. A prisão preventiva é uma medida cautelar, não uma punição. Negar o voto nesse caso seria criar uma punição antecipada, sem julgamento, o que viola o princípio da presunção de inocência.
O que acontece se o Senado aprovar a proibição do voto para presos provisórios?
O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal provavelmente serão acionados para julgar a constitucionalidade da lei. A Justiça Eleitoral já declarou que não pode deixar de aplicar a Constituição por causa de uma lei ordinária. Se o Congresso tentar retirar um direito constitucional, o STF tem poder para derrubar a lei — como fez em 2000, ao barrar tentativas de limitar o voto de analfabetos.
O projeto do TRE-RJ vai funcionar mesmo em presídios com violência?
Sim, mas com restrições. O projeto exclui explicitamente unidades onde há forte influência de facções criminosas, por risco de manipulação. O foco é em presídios com maior número de presos provisórios e menor risco de controle externo. A logística inclui mesários treinados, segurança reforçada e votação em locais dentro da unidade, sob supervisão da Justiça Eleitoral.
Quantos presos provisórios votaram nas últimas eleições?
Em 2022, 12.903 presos provisórios estavam aptos a votar em todo o Brasil — e 11.363 deles compareceram às urnas. Isso representa 88% de taxa de comparecimento, superior à média nacional. Em comparação, o número de votos entre Lula e Bolsonaro foi de 1.888.485. Ou seja, o voto desses eleitores poderia ter sido decisivo em estados-chave, como São Paulo ou Minas Gerais.
O voto de presos provisórios é um privilégio ou um direito?
É um direito. Não um privilégio. A Constituição não diz que você perde o voto se estiver preso — diz que perde se for condenado definitivamente. A diferença é enorme. Negar esse direito é tratar pessoas como culpadas antes do julgamento. É o mesmo que negar o direito à defesa. E isso, em uma democracia, é inaceitável.
O projeto do TRE-RJ vai ser replicado em outros estados?
Sim, se o modelo do Rio der certo. O TSE já sinalizou que apoia iniciativas piloto. Estados como São Paulo, Minas Gerais e Paraná têm sistemas penitenciários maiores e também têm presos provisórios em grande número. A ideia é que, em 2026, o Rio sirva de laboratório. Se a logística funcionar — e a segurança for garantida —, outros tribunais poderão adotar o mesmo modelo, tornando o voto de presos provisórios uma prática nacional.
Escreva um comentário