O termo “manés” virou combustível político. De insulto casual captado em vídeo a bandeira de protesto nas ruas, a palavra voltou ao centro do debate com um artigo da advogada Kátia Magalhães. Ela defende manifestantes que têm sido rotulados assim e aponta um cenário em que cidadãos se sentem impotentes diante do que descreve como um establishment autoritário. O estopim: um ato na orla de Copacabana, em 3 de agosto, contra o ministro Alexandre de Moraes e o presidente Lula.
O que diz o artigo e o que aconteceu em Copacabana
No texto, Magalhães argumenta que parte dos brasileiros foi transformada em “mané” porque não consegue reverter, no curto prazo, o quadro político; porque financia compulsoriamente um aparato de poder que vê como excessivo; e porque teme consequências por exercer direitos constitucionais. Segundo ela, apesar disso, esses manifestantes teriam recuperado fôlego para se reunir de forma ordeira e sob proteção da Constituição.
O artigo dialoga com um episódio que ganhou ares de símbolo: quando o ministro Luís Roberto Barroso respondeu a uma provocação com o “perdeu, mané”. A expressão, resgatada ao longo dos últimos anos, foi abraçada por opositores como identidade de resistência — um movimento comum em política, quando um rótulo pejorativo vira bandeira, como ocorreu nos EUA com “deplorables”.
Na manifestação de Copacabana, os alvos foram Moraes e Lula, e as falas bateram em temas já conhecidos: atuação do STF nos inquéritos sobre desinformação e atos antidemocráticos, e as fronteiras entre crítica legítima e apologia a golpe. Para a autora, há “medo bem fundamentado” de punições por simples exercício da liberdade de expressão. Juristas ouvidos por entidades de direitos civis, porém, costumam separar a crítica dura — que é protegida — de condutas que incentivem ruptura institucional ou violência, que não são cobertas pela Constituição.
Desde 8 de janeiro de 2023, quando vândalos depredaram as sedes dos Três Poderes, o cerco às redes de desinformação e às convocações antidemocráticas apertou. Moraes, relator de inquéritos no Supremo, virou o epicentro das decisões mais duras. Para críticos, houve exageros e efeitos colaterais sobre o debate público. Para defensores, sem medidas firmes, a escalada golpista teria seguido.
- Direito de reunião: a Constituição (art. 5º, XVI) garante atos pacíficos, sem armas, em locais abertos ao público, sem necessidade de autorização prévia — basta aviso à autoridade.
- Liberdade de expressão: protege críticas a autoridades, inclusive em tom duro; não cobre incitação à violência, apologia ao crime ou defesa de ruptura institucional.
- Atuação judicial: decisões vêm mirando financiamento, logística e autores de depredação e incitação. O debate é onde termina a proteção do discurso e começa a responsabilização.
- Ambiente político: polarização e linguagem de confronto tornam mais difícil distinguir protesto legítimo de mobilização antidemocrática.

Direitos, limites e a disputa por narrativas
O fio condutor do artigo de Magalhães é a ideia de que chamar manifestantes de “manés” tenta desqualificá-los e reduzir o espaço da crítica. Ela devolve o rótulo em tom de provocação: seriam “manés revoltados”, agora mais organizados e amparados pela Constituição. É uma narrativa que busca reposicionar personagens e dar coesão a um campo político heterogêneo, que vai de liberais céticos ao Judiciário a apoiadores da direita radical.
Há, porém, uma tensão inescapável. O país ainda lida com as consequências de 8/1. O livro “8/1: A rebelião dos manés” mergulha nesse trauma: analisa a tentativa de tomada das sedes dos Três Poderes por militantes da extrema direita, descreve inversões de papéis entre governo e oposição após 2022 e mapeia como movimentos radicais ganharam tração. A obra destaca a força de símbolos, memes e rótulos na mobilização — e como eles passam a valer tanto quanto fatos nos embates por atenção e engajamento.
Esse pano de fundo ajuda a entender por que qualquer ato na Avenida Atlântica vira termômetro do humor político. No campo legal, o balizamento continua: protesto pacífico? Protegido. Bloqueio de serviços essenciais, dano ao patrimônio, ameaça a autoridades, convocação de ruptura institucional? Passível de responsabilização. A divergência está nos casos cinzentos, quando palavras de ordem e convocatórias encostam na linha do crime sem cruzá-la de forma explícita.
Entidades acadêmicas e de direitos digitais apontam risco de “efeito inibidor” quando decisões judiciais são amplas ou mal fundamentadas — pessoas evitam falar por medo. Já associações de magistrados e membros do Ministério Público lembram que o país viveu um ensaio de golpe e que redes coordenadas de desinformação usam a capa da liberdade de expressão para testar limites e tumultuar processos eleitorais.
No meio disso, o uso político de “manés” segue útil para ambos os lados. Para opositores, é identidade e provocação. Para críticos, é cortina de fumaça que tenta diluir responsabilidades pelos excessos de 8/1 e por campanhas que flertam com ruptura. O que prevalece, por ora, é a disputa pelo enquadramento: quem define o que é protesto legítimo? Quem arbitra o que é incitação?
Enquanto novas manifestações são organizadas, um aprendizado básico se impõe: a rua continua sendo um espaço de pressão legítima, e o sistema de justiça, um freio para quando a política tenta pular etapas. Foi assim desde a redemocratização. O desafio de 2024 em diante é calibrar as duas coisas sem confundir crítica com crime nem fazer do processo judicial um atalho para a política. É nesse fio de navalha que “a revolta dos manés” quer se firmar.
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